quinta-feira, 3 de julho de 2008


Amizade, enamoramento

A Elaboração dos acasos

Nuno Artur Silva e Luís Miguel Viterbo

[Este livro, de que se tiraram 500 exemplares, foi publicado pela ed. & etc em 1989.
Com muita sorte, talvez ainda se encontre à venda algum exemplar na
Livraria de Artes, em Lisboa.]



Escrever, falar sobre o amor, a paixão, o enamoramento ou a amizade, as suas formas e os seus significados, é escrever sobre escrita e falar sobre fala, é escrever ou falar sobre fala, é escrever ou falar sobre linguagens; é, portanto, metalinguístico 1.

Sem linguagem, isto é, sem expressão, o amor ou a paixão seriam mudos: não existiriam.

Entre silêncios e vozes, uma linguagem é a expressão de um pensamento, a expressão da elaboração de um sentimento. Algo, a um tempo, concreto e potencial. E se, no Homem, o que é natural é a cultura (ou a cultura da sua natureza), também uma linguagem é tanto mais natural quanto mais cultural.

Assim, escrever ou falar sobre o amor ou a paixão é uma forma de cultivar essas linguagens e esses sentimentos e de os potenciar e projectar na perspectiva utópica que qualquer linguagem propõe.

Afinal, o amor e a paixão são escrita, literatura e mito.

Escrever é aumentar o objecto da escrita e, ao definir o seu fundamento e os seus contornos, indefinir a sua definição. Escrever é sempre jogar, construir uma escrita, inaugurar uma ficção, um Outro, que cada um, ao ler, reconstruindo, inaugurará, intimamente.

O que aqui se inclui, ou se propõe, neste exercício de linguagem, é o esboço de um paradigma para as relações afectivas, um paradigma que se abre a inúmeras estéticas, entre desejos e literaturas. O que se escreve aqui é, como em qualquer texto, a inauguração de um silêncio. De um silêncio que seja matriz de aberturas individuais a uma ideia ou a um estado de espírito, e a novas ideias e novos estados de espírito.




I

«O que é o amor?» é talvez a interrogação mais convencional e ao mesmo tempo mais retórica do homem comum ocidental dos nossos dias. De facto, assume-se com a sua formulação uma irresponsabilidade e uma indefinibilidade que mitificam a questão mas que não são senão o ocultar de inúmeras convenções e preconceitos, ou de falsas emancipações, que instalam a indiferença, a confusão e os equívocos.

Não que seja imprescindível, ou sequer importante, a resposta a essa pergunta. O que é indispensável é que não se responda — ou não se evite responder — mitificando convenções, preconceitos e equívocos.

O que é importante é perceber como, de maneira geral, se estabelecem esses equívocos, e como, a partir das perspectivas de vida provocadas pela proliferação, no senso comum e nos mass media, de tais confusões conceptuais — ou pela proliferação da sua estaticidade instituída , nascem e crescem as infelicidades. Não que seja imprescindível, ou sequer desejável, o estabelecer de definições, pelo menos de forma minuciosa e lapidar. O que é impreterível, isso sim, é procurar compreender melhor determinados comportamentos sociais — as relações afectivas.

O que propomos aqui é, desde logo, uma oposição essencial, uma clivagem entre definições operacionais — essa sim, lapidar 2. É a partir daí que se inaugura, ou intui, o novo paradigma.


Amor, paixão: palavras universais e polissémicas. Demarquemos aqui os conceitos.

De um lado, o instante: o encontro, o desejo, a manifestação de um sentimento complexo, um estado extraordinário de fascínio, uma descontinuidade: o discurso tirano, e singular, da obsessão do desejo: a paixão.

Do outro lado, a sequência: os encontros, a elaboração dos sentimentos, as identidades, as cumplicidades, as intimidades: o esboçar de uma palavra plural: o amor.

De um a outro, uma diferença radical.

A paixão é a querença, e a carência, do outro. É a ficção obsessiva do desejo, a sua fixação. É o querer o outro para mim, e de o querer como eu o quero, deixar de pensar nele, no seu desejo — cegar, esquecê-lo. A paixão cega a razão, que é porventura a forma mais elaborada de sentimento, deixando assim ver apenas as suas formas mais grosseiras. A paixão é tipicamente excessiva, autoritária, egocêntrica, egoísta.

O amor, é o tempo que o esboça e o escreve, entre presenças e ausências, provas, promessas, ritos. É moderado, solidário, errante, altruísta. É um tempo que se nomeia.

Instalemos agora a ambiguidade, estabeleçamos uma sinonímia: amor e amizade. A ambiguidade não é nova: existe na etimologia das palavras 3, na sua evolução, na sua utilização epocal ou contextual. E não há, de facto, nada de efectivo e pertinente na distinção que possa ser feita entre amizade e amor. Essa «qualquer coisa mais» que é o amor em relação à amizade, para a generalidade das pessoas, não é senão a sacralização platónica da relação sexual num idealismo de fusão corporal. Mas o «sexo» não é um estádio, é uma dimensão e um potencial humanos. Em qualquer relação, a dimensão sexual está presente através da prática de um erotismo e dos seus jogos de prazer, mais ou menos corporais — à superfície — ou mentais — ao fundo. Só a cegueira do tabu emudece os cânticos múltiplos dos corpos, e nos ensurdece e emudece. O erotismo «é um meio privilegiado de se exprimir o amor» 4. O corpo a corpo, as carícias e os afectos, as agressões e os desafios, os estímulos, são a superfície de um discurso, de um código, antigos e profundos. E, destes encontros e encantos de superfície, as palavras, as ideias, as memórias, os laços e os nós interiores, são o fundo e a forma 5. Com tudo isto se constrói o amor, e a amizade. Não há, pois, que distinguir amor de amizade. Não o façamos. Instauremos antes a inscrição de uma errata — proposta de leitura para a literatura escrita, proposta de escrita para a literatura por escrever —: onde se lê amor, leia-se amizade.

Estabeleçamos agora outra sinonímia (menos relevante talvez porque menos polémica e equívoca): paixão é enamoramento. Apaixonar-me é enamorar-me: ficar cativado pelo outro, ou pela imagem que tenho do outro: ficar preso no instante, no desejo, na obsessão e no mito.

Quatro conceitos se nos apresentam: amor, amizade, paixão, enamoramento. Sinónimos ou divergentes, o seu limiar é, porém, comum: é o encontro — a relação com o outro.




II

O limiar da relação é o encontro. O encontro é fruto do acaso, sempre. E o acaso é o indício e o romance. O acaso é apenas acaso enquanto ignorado: «encontrámo-nos», é tudo. Mas quando acorda em nós a consciência do nosso encontro como algo de extraordinário, estimulante e notável, quando acordamos para o acaso do encontro e o encaramos como um indício de uma ficção ou de uma narrativa — o destino —, logo o acaso se anula na sua nomeação e se anuncia na sua magia: «encontrámo-nos, que coincidência». O acaso indefine-se na dúvida sobre a sua identidade, na sua aura de destino oculto.

No início, no prenúncio do encontro, solitários somos e solidários pretendemos ser. Cada um de nós é, potencialmente, indivíduo de um plural. A cordialidade para com os outros em geral é o sinal de uma solidariedade prévia. Mas é sempre o acaso que nos joga.

É uma iluminação, incandescente ou discreta, o que desperta o acaso dos encontros. E é de iluminação em iluminação que o desejo progride, programa, produz a sua consciência plena, a sua voz; é de iluminação em iluminação que o desejo se faz audível. Umas vezes pouco a pouco, multiforme — a amizade; outras vezes muito a muito, desmedido — a paixão. O desenrolar do desejo numa relação afectiva é um exercício de distanciamento e de sedução; é um jogo erótico, latente ou explícito, que existe sempre no discurso e nos corpos, prévio e imediato.

A consciência do outro, a ficção do outro, o encontro, é um processo irreversível, porquanto é um processo temporal, eminentemente dinâmico, ainda que descontínuo; é uma via de comunicação que, apenas aberta, logo se mostra inexorável e irregressível. Ao situar-me face ao outro, enceno uma trama de que o presente é o indício e o passado e o futuro sequências imprevistas, transfiguradas por nostalgias ou utopias.

A partir do momento em que o outro me surge, define-se num Tu, num nome, e a sua emergência é agora em mim um sinal indelével da sua presença e da sua diferença. O conhecimento do outro ensina-me mais sobre o universo, a sua variedade e o seu sentido.

Descubro-te. E, ao descobrir-te, descubro-me mais. Porque eu serei tanto mais Eu quanto menos for Tu, mas só me reconheço num precário equilíbrio entre ser Eu e ser Tu, na medida em que te encontro no interior de uma identidade instantaneamente revelada 6. Desse modo, eu só existo neste Nós que é o encontro e o equilíbrio incerto entre um Eu introrso para que me remetes a um Eu abrangente para que me remeto. Em cada encontro, reitero a fase do espelho, em que tu és a minha imagem, a tua minha imagem, a imagem diferente de mim. Jogo de imagens, segredos e revelações, a consciência das nossas posições e identidades relativas desenvolve-se no discurso das insuspeitadas consciencializações do outro, de mim, e de mim e do outro.

Confrontado com a natureza primordial da nossa diferença, aquilo que desperta o meu fascínio é a igualdade que subjaz nessa diferença. Sabemo-nos diferentes, isto é, um e outro, e descobrimo-nos Um no Outro. E quanto mais te descubro, mais me descubro, e tanto mais quanto mais formos iguais. Mas o percurso das descobertas passa pela relevação da pequena diferença na igualdade da diferença; pela suavemente súbita disponibilidade do outro; pelo prazer do indizível acaso dos nossos encontros e ausências; pelas pistas e indícios que os nossos desejos acordam no encanamento da identidade e das discretas diferenças.

Se a identidade conduz à comunhão, a diferença aponta a comunicação. Ao encontrarmos o outro, os nossos valores oscilam da comunicação à comunhão, num processo de incessante ressignificação, num processo de consciência. É este processo, este percurso — a História do Eu e do seu itinerário (os contextos) — que origina a significação, o limite e o limiar do outro. «Isto significa que» quer dizer «isto é outra coisa que não isto». Queremos assim significar que cada coisa é incompleta, que é sinal de si e de outra coisa; e que é nesta incompletude que tudo se joga, num equilíbrio em que eu sou o limiar do sentido, de que o outro é limite.

Feito de subtilezas, de sentido e expressão, o nosso encontro com o outro é uma disciplina artística a apurar dia a dia; é um exercício de depuração e elaboração, um exercício de estilo. Um jogo de distâncias. Um trabalho de distâncias. Uma ficção, irremediavelmente verdadeira e real.

As distâncias, essa ficção, são o cosmos do meu mundo afectivo: o amigo, a apaixonada, aquela, este, o João, a Ana, entrecruzam-se em translacções e rotações, namoros e cortesias, cortes e cortes 7, intimidades e extremos, cristais e cristalizações — linguagem dos acasos e enredo das distâncias — a nossa atmosfera, a nossa luz, o nosso azul.


E, do nosso encontro, é o tempo que esboçará no tempo o desenho de uma paixão, ou de uma amizade encantada de enamoramentos, ou de um enamoramento isolado, ou de um encontro…




III

A paixão — na sua configuração tradicional — é o discurso do poder e da sua obsessão, o discurso da tirania; a paixão, assente num desejo excessivamente afirmado, origina a tensão e a neurose, o primarismo da violência recalcada. Um desejo assim não vive senão para a sua consumação, perspectivando aí toda a sua felicidade e toda a sua glória: o objecto do desejo é a solução da paixão. Todo o desejo imoderadamente declarado ignora a possibilidade de felicidade que não na consumação; ignora a prática de ser sem querer ser; ignora e anula a sua própria respiração — a euforia da consciência do desejo enquanto instante da iluminação e a elaboração da sexualidade estrita do desejo em sedução, comunicação, amizade, O que pode haver de negativo no desejo é a sua objectividade e a eventual (na nossa sociedade, a habitual) procura de um objectivo 8. Sacralizando-se o desejo, sacraliza-se o u e anula-se o Outro, que é o objecto do nosso desejo; fracassa toda a solidariedade, para se viver apenas para a consumação do desejo — que afinal acaba por, quase sempre, desapontar, dando origem à petrificação e à nostalgia obstinada na utopia do antes. Apaixonados, cegos, voltados sobre nós próprios, não vivemos para o percurso e para os imprevistos desejos e as inesperadas consumações. Somos sujeitos de um discurso passional incessantemente recriado e revivido, infeliz — porque utopiza a felicidade —, e, na sua obsessão, hermético, estático, estéril. Ou quase estéril, pois subsiste o exíguo espaço que é o universo dos seus inumeráveis actores e das suas encenações, incessantemente renovadas. Apaixonados, o nosso discurso é de angústia e difidência, de ciúme e agressão — de egoísmo, em suma; ainda que eloquente ou sublime nas suas formas e nos seus limites, é, no seu fundamento, um discurso grosseiro, pobre, primário — sintoma de um estado obsessivo que quer não ser apenas um estado mas passar a ser uma relação. Mas quando pelo menos um dos sujeitos de uma relação se encontra apaixonado pelo outro, a própria relação é tão incompleta e frustrada quanto a paixão que a corrompe.

É o culto obcecado da paixão que acaba por sabotar as suas próprias institucionalizações — primeiro o namoro e, depois, o casamento. Instituindo-se, a paixão, na sua irreversibilidade, suicida-se. Ao consumar-se, com o namoro ou o casamento, a paixão esgota-se: o que era extraordinário torna-se ordinário, o que era desejo torna-se consumação do desejo, o que era utopia, realização. A proximidade dilui o que nos atrai no outro, porque é um simulacro da consumação do desejo. O único fascínio da paixão, a sua utopia, o fulcro do desejo, é assim anulado; alucinados pela vertigem da paixão e pela angústia da sua impossibilidade, ou da impossibilidade da sua remanescência, a utopia deixa de fazer sentido. Sobrevive a nostalgia amargurada, o desejo do desejo, a utopia inerte do antes. Namorar, no quadro tradicional, acompanha-se assim desse desenamoramento, banalizando os gestos e as magias, confundindo ritos com hábitos, que acabam por se perverter em vícios, carências e obsessões. E casar vem a ser repetidamente o fruto de um equívoco mítico: casa-se porque se está — ou esteve — apaixonado, esquecendo o carácter suicidário da paixão, e não porque se está consciente da construção de uma amizade.

Há que profanar a sacralização do desejo e dissuadir a escalada das paixões no abismo da ausência de consumação. Há que revogar a infelicidade que resulta das confusas noções e práticas das relações afectivas. Perante o culto obsessivo, doentio e infeliz do desejo — esquizofrénico na inconciliabilidade entre a paixão e a sua consumação —, e o atropelamento dos conceitos de amor e paixão, há que assinalar uma nova claridade.

Há que suprimir as angústias e os medos, mas sem que por isso se instaure a indiferença. Não se procura aqui um niilismo, mas sim um hedonismo, no sentido mais antigo e mais elementar, uma (proposta de) filosofia de vida: ser feliz é melhor que não o ser. É a procura da felicidade, mas sem a veneração do desejo da felicidade — dificilmente se pode ser feliz se se procura a felicidade. O equilíbrio encontra-se entre a exaltação do desejo e a sua anulação; numa generalização simplista, algures entre a visão ocidental — o culto do desejo e a sacralização da paixão — e a visão oriental, ou de um certo oriente — a anulação do desejo, e da identidade. (Um grande parêntese se abriria aqui para analisar múltiplos aspectos relacionados com o amor e o ocidente ou o amor e o oriente; enfim, não foi para isso que se abriu este parêntese.)

A euforia, o deslumbramento, o não-sei-quê que se deseja, esse indizível que é o próprio desejo semi-consciente do estado de enamoramento começa agora, nos nossos dias, a delinear a descoberta de uma nova forma de relação, sobretudo entre as novíssimas gerações, que a designam pelo termo «curtir (com)». Ainda não é, pela sua irregularidade e indiferença ou inconsciência, uma relação entusiasmante. A própria designação não será ainda atraente, talvez pela sensação de inadequação para o contexto — e não a prática — origina. Mas é já um sinal da fragmentação da paixão, são já os seus estilhaços. É um destroço, mas um destroço vital, sadio e feérico. É já um indício de u enamoramento enérgico mas não tirano, desejoso mas não obsessivo, engenhoso mas não maquiavélico. Deixamos de estar apaixonados pelo outro — e só —, para estarmos enamorados pelo outro — e tudo! Sem que o façamos com menos embaraço ou com menos dificuldades de conciliação, mas fazendo-o com menos ansiedade e neurose e com mais graça e mais engenho (porque, afinal, o que é extraordinário não é o outro, mas o que o outro desperta em nós).

Aquilo a que hoje se chama «curtir», na sua superficialidade e no primarismo das suas práticas, parece apontar, talvez paradoxalmente, no sentido da negação da banalidade do sexo e da tirania grosseira da paixão egocêntrica, desequilibrada e descomedidamente focada e sublimada na imagem do outro. Não que se pretenda rejeitar o sexo, a nossa dimensão sexual. Há que renegar tanto a opressão erotofobia como o despotismo da erotomania. Há que consumar o desejo no desejo da consumação — abrir o espaço da sedução, encenar, perverter, indefinir a própria consumação e o próprio desejo — descobrir o clímax no percurso, desejando, sempre.

O que se pressente, hoje, é o germinar de uma relação mais consciente, que não assenta na paixão, como foi definida, nem é já esse «curtir». Cabe aqui, por isso, repensar a sinonímia entre paixão e enamoramento. «Sinónimo» é actualmente «o que tem a mesma (ou quase igual) significação». É este quase que justifica e dissipa a sinonímia como processo geral da linguagem e de cultura. E o quase que podemos encontrar entre enamoramento e paixão é agora radical. A paixão é a degenerescência do enamoramento, ou do fascínio que o envolve; é o estado paroxístico do desejo inconsumável da perenidade de um estado por natureza efémero. O enamoramento revela-se como sendo a descoberta da enorme sedução da ambiguidade e da matização dos desejos e das suas formas, dos seus fetiches e do seu vudu. Na paixão, o modelo de casal é primário, exclusivo, possessivo, neurótico, egoísta (e, se o egoísmo é mau, é porque, antes de mais, e paradoxalmente, é mau para o egoísta); na paixão não há comunhão, não há um casal, há um par. No enamoramento, não há modelo de casal, não há modelo, não há projecto; o casal não exclui, porque não possui senão o instante do enamoramento. O enamoramento, cláusula essencial da proposta de paradigma que aqui se intui, mas sem o despotismo da exclusividade da paixão e a sacralização das suas instituições, mas sem por isso perder desejo, a exaltação, a cumplicidade, a singularidade, o rito ou a própria sacralização.

Repensemos também a sinonímia entre amizade e amor. Declaremos: o amor é a consciência íntima da amizade e intui-se, por inspiração, no seu percurso, num olhar, num nada — tudo. Da coincidência das nossas diferenças, o amor, num espírito de solidariedade e mística dos acasos, desponta como uma iluminação interior e sublime, como uma revelação, uma questão de fé, de fé na fé. Amar é saber-se que se ama, e exclamá-lo em silêncio. Há que recuperar a palavra pela via do seu silêncio, da sua inflexibilidade. É preciso que a palavra «amor» deixe de querer dizer tudo para que possa querer dizer alguma coisa. Será a palavra para os instantes de iluminação, fascinação do conhecimento, esplendor da beleza — comunhão holística —: uma palavra de sentido cósmico, a que há que negar todos os significados. Um significante branco, puro, transparente, suspenso para uso exclusivo e intransmissível — e que assim há-de ser irrecuperavelmente. Pela sua irrecuperabilidade recuperaremos o seu mito, a sua utopia, a sua significação, a sua irrecuperabilidade.

E, no dia-a-dia, entre olhares, diálogos, passeios e mãos-dadas, entre cruzamentos e montagens, numa geografia e numa história de corpos e lugares, na teia dos acasos e das necessidades, a consciência da amizade é pontilhada por enamoramentos, e a amizade e o enamoramento acabam por se correlacionar e indefinir. Como se, vencido o monstro cimério da paixão, que todos cegava, se pudesse novamente abrir os olhos para os enamoramentos e, dos enamoramentos, construir a amizade.

A amizade poderá ser assim a prática dos enamoramentos.

E assim se dissipa a oposição atrás estabelecida entre amor/amizade e paixão/enamoramento, pela pulverização das suas vertentes essenciais em estrias indiscriminadas, individuais e imprevisíveis.

Só aparentemente — à superfície — é a nova desordem amorosa: o fundo é a fonte de um novo paradigma, e a sua inexorável limpidez e transparência: o segredo para múltiplas e inumeráveis práticas individualizadas.

E, no entanto, com estas inesgotáveis formas de que se revestirá, o paradigma manifestará superfícies que, à primeira vista, poderão não diferir nem de relações anteriores nem umas das outras, mas que, no fundo, envolvem já um novo entendimento semântico, simbólico e real das relações afectivas. Para que se inaugure este novo paradigma, é inadiável expurgar do quotidiano as parasitárias (in)definições rígidas e estéreis que estagnam, enferrujam, apodrecem a livre circulação das utopias pessoais e indizíveis. Palavras como casamento, exclusividade, namoro, rito ou fidelidade assumirão assim significações próprias e mais subtis, intraduzíveis, na especificidade de cada relação entregue ao seu próprio dinamismo e ao dinamismo do seu próprio sentido. É outro, o paradigma que aqui se propõe, e é aberto.

Daí se anuncia uma outra física das amizades e dos enamoramentos, uma física dos pormenores, dos acasos e das probabilidades, sem a ilusão das grandes uniformizações e dos grandes sistemas 9.

É uma outra exclusividade que se reclama: é a ressignificação da singularidade do outro enquanto ser privilegiado, ou privilegiado por nós; da fidelidade a essa imagem do acaso que, iluminando-se, nos iluminou. Serei fiel ao outro não porque é o único, mas porque é único 10.

Somos seres solitários, irremediavelmente individuais e diferentes, com motivações, temperamentos e valores pessoais. Entre ritos e hábitos comuns, é essa a garantia da nossa versatilidade e da relevância dos nossos encontros. Mas o essencial da relação repousa na relação em si, no fértil infinitivo do verbo amar, que, como acontecer, deveria exprimir uma acção abstracta sem agente, e não existir como verbo para ser conjugado 11. Que se ame o amor, e só; que esta tautologia nos proclame proclamação de nós próprios.

O silêncio absoluto da palavra amor é o rumor dos discursos da amizade. Entre corpos e palavras, jantares e despedidas, música, poesia, jogo, mortes e viagens, aquilo que seremos é o enredo dos desejos, o seu puzzle eternamente inacabado, a sua impossível imagem definitiva. Aquilo a que aspiraremos é a criação de uma linguagem comum, fruto da ficção do tempo e dos acasos, é a amizade.

Daí, da amizade, nascerá o novo matrimónio, entre amigos, em comunhão e rito — a criação da nova família.


Que haja entusiasmos e euforias, nostalgias, tristezas e melancolias, mas que se instaure uma serenidade de fundo, uma alegria medular, um equilíbrio, um equilíbrio radical; não a prostituição do amor e das palavras que o nomeiam, mas a fertilidade da sua presença mítica e inominável. Redescobriremos então os seres, já não ofuscados por um clarão violento e trágico, mas fascinados pelas infindáveis cintilações dos seus corpos e dos seus encontros. De tal forma que as práticas e as teorias se diluirão e indefinirão de maneira tão específica, tão inefável, tão incomunicável no dia-a-dia dos seus encontros e desencontros que a euforia da consciência dessas cintilações se assemelhará à euforia da consciência da existência, à obscura claridade da existência e do desejo, do enamoramento e da amizade, do amor.







«Pessoas há que nunca se teriam enamorado 12 se nunca tivessem ouvido falar de amor».

La Rochefoucault

Proposta ou interpretação, ensaio ou manifesto, o que aqui fica escrito não é — não quer ser — nada para além da voz de alguém que fala, enamoradamente, de amor.

Uma voz ela própria fruto de um encontro e de uma amizade, desejosa de inspirar novos encontros, novos enamoramentos, novas amizades — uma nova literatura —: é esta a nossa utopia.










Haverá ao longo do livro citações não reveladas;

deixa-se ao leitor o prazer de as descobrir.










^ 1 Metalinguagem: transformação da linguagem. Não será sempre, em maior ou menor grau, o conhecimento metaconhecimento e metalinguagem?

^ 2 Definições escolhidas de um conjunto de definições possíveis; operacionais porque supostas consistentes, plausíveis e produtivas — regras de um jogo.

^ 3 O radical latino amō pode traduzir-se por «ter amizade ou amor a», «gostar de», «estar apaixonado por», «namorar com». (E se a história de uma palavra é a história das suas traições ao seu étimo, palavras há que, no percurso do sentido, acabarão por trair o curso da traição, ou aperfeiçoá-lo, regressando, num outro contexto — portanto ilusoriamente —, ao passado intacto do seu étimo).

^ 4 O que deve saber-se sobre a sexualidade, p. 26 (Ed. Assírio & Alvim).

^ 5 E, paradoxalmente, não é a superfície o mais profundo? Não é a forma (molde) um conteúdo limite?

^ 6 Também na escrita, no seu processo extremo de sinonímia, uma palavra é tanto mais única e individual quanto menos for qualquer outra.

^ 7 Entenda-se: cortes (cortejar) e cortes (cortar, romper).

^ 8 Será, aliás, este um dos problemas, ou vícios, da sociedade ocidental: um objectivo para tudo e um objectivo para a vida, o que é, porventura, redutor e redundante.

^ 9 No seu carácter de descentralização, de particularização, de proliferação das diferenças e do seu diálogo, este paradigma integra-se, aliás, no movimento de espírito e de estilo evidente em toda a arte e filosofia do final deste século.

^ 10 «Ele não procurava a relação exclusiva (possessão, ciúmes, cenas); também não procurava a relação generalizada, comunitária; o que ele queria era, de todas as vezes, uma relação privilegiada, assinalada por uma diferença sensível, remetida ao estado de uma espécie de inflexão afectiva absolutamente singular, como a duma voz de timbre incomparável; e, coisa paradoxal, ele não via qualquer obstáculo a que essa relação privilegiada fosse multiplicada: nada senão privilégios, em suma; a esfera de uma amizade era assim povoada por relações dualistas […]. O que era procurado era um plural sem igualdade, sem in-diferença.» (Roland Barthes por Roland Barthes).

^ 11 E também escrever é um verbo sem agente e sem conjugações, acto essencial que se (nos) ilumina quando escrevemos — consciência da escrita.

^ 12 Traduzimos être amoureux por enamorar. Questões de linguagem…